Escrever e desapegar: uma prática que nos livra dos vícios da escrita

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Você decidiu começar a jornada como escritor e está trilhando o seu caminho no mundo das palavras. Ótimo, louvável. Mas o que fazer com aquele texto que não ficou tão bom quanto o imaginado? Será que tem jeito?

Talvez tenha chegado a hora de ver sua escrita de uma forma mais zen. Já que estamos lidando com um aprendizado contínuo, a lição de hoje é valiosa: às vezes é preciso escrever e desapegar.

Escrever e desapegar, é só começar

Vivemos imersos no ideal de que o bom escritor é a pessoa capaz de transmitir perfeitamente suas ideias em forma de texto, já formatadas, coerentes e limpas. Se você realmente acredita nisso, não perca mais seu tempo. Escrever sem depois lapidar o texto é como jogar o seu tempo no lixo.

O primeiro passo para uma boa escrita é escrever sem compromisso ou julgamentos. Porém, ao fazer isso, é bem possível que você crie boas construções que fogem da coerência do texto. É normal.

Admita, aquelas palavras não funcionam ali. Não tenha dó, apenas livre-se delas.

Ser humilde ao receber um feedback do trabalho também é uma forma de desapego. Agora que está publicado (principalmente se for impresso), não há mais como consertar.

Reescrever nunca é demais

Cada novo texto é diferente do anterior. Afirmação óbvia, mas necessária quando falamos sobre releitura. O que você escreveu não é uma joia sagrada e indivisível na qual não se pode tocar. Mexa, troque os parágrafos de lugar, mude a ordem das ideias, não se limite ao que está pronto.

Escrever é comunicar com clareza, ser coeso, não importa o objetivo. Ser um bom escritor significa ser capaz de transmitir um argumento e ser compreendido pelo leitor, mesmo que, para isso, tenha que fazer cinquenta versões do mesmo texto.

Reconhecendo os pontos fortes e fracos

Nós, escritores, somos artistas e artistas têm ego frágil (falo por mim mesma, aliás). Nem sempre estamos preparados para ouvir críticas, tanto negativas quanto positivas. No entanto, sem leitores, o ato de escrever perde o sentido.

Ser humilde ao receber um feedback do trabalho também é uma forma de desapego. Agora que está publicado (principalmente se for impresso), não há mais como consertar. Ou o contrário, um texto bom não garante seu lugar ao sol. Nem você nem ninguém é “uma máquina de fazer textos bons”.

O bom texto é fruto da prática e, enquanto praticamos, cometemos erros e conquistamos ferramentas para facilitar o trabalho. A sistematização do trabalho faz com que sejamos capazes de evitar erros, mas não nos torna perfeitos. Por isso que ser escritor é um eterno aprimorar-se.

Não se iluda. Escrever é desapegar. É deixar ir tudo de ruim e aprender algo novo para melhorar. Um passo a cada dia. Um dia de cada vez.

A escrita como um ato terapêutico

Muitos psicólogos sugerem que seus pacientes desenvolvam o hábito diário da escrita. Além de auxiliar na liberação das emoções, escrever sobre o que você está sentindo pode ajudar a desenvolver a criatividade. Mas esses textos muitas vezes são feitos para ficar no fundo da gaveta, um verdadeiro escrever e desapegar.

Se você é muito autocrítico ou metódico, recomendo que tente escrever sobre seus sentimentos. Esqueça da estética, da qualidade e até da coerência, apenas escreva. Reserve 10 minutos do seu dia, de preferência logo depois de acordar, pegue uma folha de papel e a preencha com as primeiras palavras do seu dia. E depois guarde, como se não tivesse acontecido.

E que voem as palavras ao vento

O exercício do desapego é algo que pode – e deve – ser aplicado na vida como um todo. A efemeridade e a impermanência fazem parte da nossa história, marcam as fases da nossa caminhada. Por que então temos tanta dificuldade em escrever e desapegar?

No romance O País das Neves, do escritor japonês Yassunari Kawabata (link afiliado), o termo “esforço em vão” é explorado inúmeras vezes. Enquanto o protagonista Shimamura descreve sua afeição ora pela gueixa Komako, ora pela jovem Yoko, percebe que não há nada que ele possa fazer efetivamente além de seguir no caminho que a vida lhe oferece.

E não é disso que temos medo? De que, apesar de todo o trabalho, escrever não passe de um grande esforço em vão? Por isso nos apegamos ao texto terminado. Depois de tantas horas de trabalho, queremos mantê-lo exatamente como nasceu.

Não se iluda. Escrever é desapegar. É deixar ir tudo de ruim e aprender algo novo para melhorar. Um passo a cada dia. Um dia de cada vez.

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Quem escreve sobre escrita

Mylle Pampuch

Mylle Pampuch escreve e edita livros. Publicou as histórias em quadrinhos A Samurai e Doce Jazz e os livros de contos A Sala de Banho e Realidades pré-distópicas (& modos de usar). Ministra oficinas de escrita criativa, orienta autores em seus projetos literários e incentiva todos que queiram a escrever e publicar suas próprias histórias.

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