Para mim, a história começa com a criação dos personagens. Me é difícil, se não impossível, pensar na ambientação antes de estruturar ao menos o personagem principal.
Revendo minhas narrativas, vejo que é quase unânime a presença de personagens femininas fortes. O que, no início, era apenas uma coincidência, logo se tornou intencional e hoje faço questão de dar voz a essas mulheres que surgem em meu imaginário.
No artigo abaixo, reuni algumas experiências e observações que obtive na minha caminhada ao criar de personagens femininas fortes. Creio que existem muitas escritoras e escritores que, assim como eu, desejam muito mais do que apenas contar uma narrativa: acima de tudo, querem que seus personagens representem seus leitores.
Se depois da leitura desse artigo você quiser aprofundar seus conhecimentos sobre a construção de personagens, dê uma olhada no meu e-book Guia Básico e Prático de Roteiro para a sua próxima História em Quadrinhos. Os capítulos sobre personagem, arquétipos e jornada do herói são muito úteis não só para roteiristas, mas para todos os escritores.
O encantamento com a personagem
Que seja logo dito: o personagem central é o coração da narrativa. É ele quem causa a ação, quem age, interage, transforma. O universo mais mirabolante não o supera, assim como a história mais enfadonha não o empobrece.
Isso porque é o personagem que causa identificação. É ele que carrega as características humanas que geram empatia, raiva, repulsa, paixão, incômodo, etc. Falar sobre mundos incríveis habitados por seres aleatórios é como ver a vídeos de paisagem no YouTube – é tudo lindo, mas logo enjoa.
Acredito que todo mundo tem personagens preferidos. No meu caso, mesmo antes de começar a escrever, fui atraída pelas personagens femininas fortes. Eu queria ser representada por elas nos jogos (Sonia Blade, do Mortal Kombat), nos desenhos (Lucy, Anne e Marine, de Guerreiras Mágicas de Rayearth), nas séries (Xena, de Xena, a Princesa Guerreira).
De tudo o que vi na infância, o que ficou na memória foram as histórias com essas mulheres – não pelo conteúdo, não pela estrutura ou pelas reviravoltas. Foram as personagens femininas fortes que me marcaram.
Agora, faça uma pesquisa rápida na sua memória, lembre-se de todas as histórias que marcaram a sua infância e responda: quantas delas você se lembra por causa dos personagens?
É um erro renegar o devido cuidado ao seu personagem, já que é ele que encanta e prende a atenção do leitor. Ao estruturar uma narrativa, você conta os altos e baixos do que acontece na vida dele.
Se você acredita que as mulheres são muito mais do que meros acessórios nas narrativas, vem comigo! A partir de agora, me aprofundarei mais na identificação e construção de personagens femininas fortes.
O que define uma personagem feminina forte
Quando pensamos em personagens fortes, em um primeiro momento, relacionamos o “forte” com força física – porque esse é o padrão quando pensamos em personagens masculinos fortes.
No entanto, é preciso se lembrar que força – seja ela física ou de personalidade – nada tem a ver com o termo quando empregado às personagens femininas.
A personagem feminina forte é uma personagem consistente, que luta pelo que acredita. Parece óbvio, em se tratando de construção de personagem, já que a regra para elaborar bons personagens é que eles sejam consistentes e tenham um objetivo claro.
Mas veja, a força feminina é diferente da masculina. As mulheres, por exemplo, têm variações hormonais e expressam seus sentimentos de forma diferente dos homens.
Ser uma personagem forte não a torna insensível à sua natureza – ao contrário dos personagens masculinos, que podem ser vistos como fracos ao demonstrar seus sentimentos.
(Perceba que não estou fazendo nenhum tipo de julgamento, só estou trazendo imagens usuais de força e fragilidade. Concordo que tanto homens quanto mulheres podem chorar o quanto quiserem sem que isso os torne mais fracos.)
Portanto, uma mulher forte dentro da narrativa é aquela que, independente da sua aparência, age por sua conta e risco, fazendo a diferença para o enredo.
Ela sabe que a vida pode ser horrível e demonstra o impacto psicológico que suas ações têm sem pudor. Ela chora, sofre, se emociona, se exalta; mas na maioria das vezes não vai lá resolver tudo na porrada.
Ela é forte porque extravasa, aguenta o tranco e procura ser mais diplomática, protetora. Sua força está mais atrelada à presença de espírito do que ao físico.
Identificando mulheres fortes em outras histórias
Em geral, não é difícil identificar uma personagem feminina forte. Não é a mera presença de uma mulher dentro da narrativa que faz dela uma personagem forte. Pela minha experiência como escritora e leitora, aponto três características básicas:
Ela age por conta própria
É muito comum encontrar personagens femininas em livros, filmes e séries que têm a função de ser acessórios dos homens. São esposas, filhas, secretárias, empregadas, amantes e ajudantes no geral. Tudo o que elas fazem e cada decisão que tomam é em função do homem.
É natural que, dentro de uma narrativa, os personagens secundários existam em função do personagem central – como se, literalmente, orbitassem ao seu redor. No entanto, o grande problema é a repetição do padrão de mulheres orbitando ao redor dos homens.
Se mostramos apenas homens em posições superiores, com quem as leitorasse identificarão? Ou com os homens, como um ideal inalcançável para muitas; ou com as mulheres, sempre submissas.
Quando uma personagem feminina age por conta própria, sem levar em consideração o que os homens (e a sociedade) esperam dela, ela ganha uma personalidade. Mesmo que você não concorde com as atitudes dela dentro da narrativa, é impossível negar que ela tem uma personalidade forte e independente.
Uma mulher que age de acordo com o que acredita, pelos desejos e valores que possui, que se impõe e desafia o que a mandam fazer é uma grande candidata a conquistar os corações das leitoras.
Ela tem uma função de destaque (independente do homem)
É bem comum que, ao agir por conta própria, a personagem feminina receba certo destaque dentro da narrativa. Mesmo que ela seja uma personagem secundária, sua presença se torna indispensável para o desenvolvimento da história.
Portanto, não é o papel que ela desempenha em relação ao homem que a torna um acessório – afinal, não problema algum em ser mulher, filha, amante ou empregada de um homem –, mas sim que esse papel a defina por completo a ponto de torna-la um enfeite.
Na série Mad Men, por exemplo, as mulheres podem não ocupar os melhores cargos nem serem as protagonistas diretas da série (ao menos no início), mas é impossível tirá-las da história sem fazer com que toda a narrativa perca o sentido.
Em contrapartida, no filme Truque de Mestre, a presença das mulheres não passa de enfeite. Nem mesmo a ilusionista, tida como uma das principais, participa dos momentos decisivos das narrativas. Se você retirar as mulheres do filme, não alterará em nada o enredo.
A partir de agora, comece a prestar atenção na presença das mulheres nos filmes, livros, séries e jogos. Você perceberá bem rápido que exemplos ruins não faltam.
Ela não precisa ser bonita nem sexualizada
As personagens femininas fortes possuem tantos traços de personalidade quantos os personagens masculinos, mas, por algum motivo, insistimos em atrelar inteligência e força física à beleza.
E quanto menos roupas, melhor.
As personagens femininas, ao longo da história, sempre foram representadas nos padrões de beleza vigentes. As pinturas de Michelangelo na Capela Cistina ou as gravuras japonesas de ukyo-ê são dois de inúmeros exemplos.
Exemplos que, em sua maioria, foram produzidos por homens.
No entretenimento contemporâneo não é diferente. As mulheres, dentro das narrativas, muitas vezes são mostradas como exemplos de como devem ser para agradar aos homens.
A beleza física é um chamariz para as vendas, e até que não haveria nada errado com isso se tais padrões não extrapolassem para o mundo real. As leitoras e espectadoras muitas vezes querem ser perfeitas como suas representações dentro das narrativas.
Por isso, se você ver uma personagem bonita e que só está de enfeite dentro da história, desconfie: é bem provável que ela esteja ali apenas para agradar ao público masculino.
Buscando bons exemplos
Livros, filmes, histórias em quadrinhos, séries e jogos estão repletos de bons exemplos de personagens femininas fortes, mas eu quero falar um pouco das mulheres reais.
Existem mulheres fantásticas ao nosso redor com histórias que valem a pena serem ouvidas o tempo todo. “Para os homens sempre foi mais fácil” já soa como um clichê, mas é a pura verdade.
Historicamente, as mulheres precisaram – e ainda precisam – desafiar as regras impostas a elas o tempo inteiro. Casamentos arranjados, gravidez indesejada, abusos sexuais, violência doméstica (tanto física quanto psicológica) eram normais há 100, 150 anos.
Muitas vezes nossas mães, avós e tias tiveram que enfrentar os olhos da sociedade para se divorciar de um marido abusivo, para morar sozinha e se sustentar ou para levar adiante uma gravidez sem ter marido.
Histórias assim podem até ser comuns, mas é inegável o poder que elas têm de inspirar ideias. Você não precisa escrever uma biografia da sua parente, basta ouvi-la contando sobre sua vida e utilizar a força que ela transmite.
No fundo, o que todos nós queremos é ouvir histórias de pessoas que, de alguma forma, superaram limites e desafiaram a situação imposta.
Conhecendo a sua personagem
Para elaborar qualquer personagem consistente, é preciso conhecê-lo a fundo. Afinal, é a personagem que fica na memória do leitor, que conduz a narrativa e que causa a identificação.
Por isso, você precisa saber sobre quem está escrevendo. Quem é essa mulher de quem você quer contar a história? No que ela acredita? Quantos anos ela tem? Qual é o seu objetivo de vida? Pelo que ela luta? Qual é a sua altura, a cor dos seus olhos, do seu cabelo, da sua pele? Qual é a sua orientação sexual?
Conhecê-la é o primeiro passo para torna-la real. A velha máxima do escritor que diz que o personagem fala por si mesmo nada mais é do que um conhecimento profundo desse personagem – de tal forma que todas as suas atitudes ressoem seus valores, tornando-o consistente.
Mas como fazer isso?
No meu livro Guia Básico e Prático de Roteiro para a sua próxima História em Quadrinhos eu proponho vários exercícios de personagem, entre eles a famosa entrevista. Reuni 21 perguntas para você fazer ao seu personagem e responder em primeira pessoa – assim você o conhece por completo antes de começar a desenvolver a sua narrativa.
E, por favor, não comece a escrever antes de conhecer sua personagem. Se você o fizer, correrá o grande risco de torna-la inconsistente de tal forma que em um momento ela fará algo e, no seguinte, fará o contrário, acabando com o interesse do leitor pela sua história.
O desejo de ser representada
Como mencionei no início, personagens femininas fortes sempre me chamaram a atenção. Creio que hoje, mais do que nunca, várias mulheres compartilham do meu desejo de serem representadas nas narrativas.
Eu já assumi que tudo o que escrevo passa pelo protagonismo feminino. Eu gosto de escrever sobre mulheres que superam os obstáculos, sejam elas heroínas propriamente ditas ou pessoas comuns.
De uma forma geral, eu escrevo aquilo que gostaria de ler. Escrevo pelo prazer não só de criar histórias, mas também de extravasar essas mulheres que ressoam em mim e podem inspirar outras.
Por isso, quero terminar esse artigo com um conselho: se você quer ver mais personagens femininas fortes no mundo, escreva-as. Mantenha contato constante com histórias (reais e fictícias) de mulheres fantásticas e me ajude a encher o mundo de personagens femininas fortes e incríveis.
E se você quiser aprofundar os seus conhecimentos na construção de narrativas, já sabe: o Guia Básico e Prático de Roteiro para sua Próxima História em Quadrinhos está aí pra isso.
Os capítulos sobre personagem, arquétipos e jornada do herói são muito úteis não só para roteiristas, mas para todos os escritores que querem construir personagens memoráveis.
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