Storytelling: o que nos encanta e nos leva a contar histórias?

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Estou há quase 5h pensando sobre como escrever este artigo. Entre pausas e reflexões, me propus a começar sem rodeios. Impossível. Observo as folhas que dançam com o vento, existem e só. Não querem contar histórias, transmitir conhecimento, viver além do agora. Não pensam.

Porta nuvem barulho abacate rolimã venda grade.

É bem provável que sua imaginação tenha completado as lacunas e criado uma história para dar sentido à sequência de palavras. Faz parte da nossa natureza inventar histórias, por mais bobas que sejam, para dar sentido ao que nos é apresentado.

No entanto, quando começamos a escrever para o outro, não importa o quê, é preciso entregar algo além de uma pilha de palavras sem nexo. Dar elementos suficientes para guiar o nosso receptor no caminho que queremos é chamado de storytelling.

Finitude ao redor da fogueira

É preciso ser realista: o ser humano é o único animal que tem a consciência de que morrerá algum dia. E o que seria de todo o conhecimento da humanidade se não fosse transmitido?

Muitos estudiosos acreditam que as primeiras histórias eram contadas pelo homem pré-histórico ao redor da fogueira, tanto para transmitir conhecimentos quanto para entreter o grupo.

Com o passar do tempo, contar histórias tornou-se também uma forma de vencer a finitude da vida. Assim, mesmo que um homem morra, sua ideia se perpetuaria através das gerações.

O Paradigma Indiciário do historiador Carlo Ginzburg mostra que o ser humano começou a contar histórias através de indícios: uma pegada no chão mostrava que algum animal teria passado ali, por exemplo.

Segundo esse raciocínio, a evolução da humanidade só ocorreu porque grandes observadores da natureza, das estrelas e da própria sociedade foram capazes de transmitir suas descobertas uns para os outros.

Quantos matos teríamos comido antes de encontrar um pé de alface crespa?

Por que contamos histórias?

Assim como nossos antepassados, todos temos algo a dizer. Descobertas, novas experiência, brigas, felicidades, nascimentos, Cada um de nós já ouviu e contou ao menos uma história sobre cada um desses assuntos.

Não importa se são experiências pessoais, que nos atravessam, ou de fora, colhidas de amigos, livros, filmes, jogos, etc. Nós somos incapazes de ignorar histórias. Narrativas fazem parte do que somos e nos moldam desde o primeiro choro.

Compreender uma narrativa nos coloca como membro de um grupo, não importa qual.

Sobrevivência

Conhecer vai muito além do instinto puro e simples. Nós aprendermos através das histórias que nos contam, da experiência do outro. Será que nós saberíamos o que é uma alface se ninguém tivesse nos mostrado? Quantos matos teríamos comido antes de encontrar um pé de alface crespa?

Todo o conhecimento empilhado em bibliotecas tem sua própria história. Seu momento de descoberta particular, de pesquisa, de dedicação. Admiramos grandes pesquisadores e inventores, lemos suas biografias, procuramos neles algo de nosso.

E, não menos importante: sobrevivemos com o que cada um deles descobriu.

Não há nada de fora da natureza que não tenha sido inventado por alguém.

União

Ao partilhar conhecimentos e contar histórias, criamos uma identidade. Por isso, não é à toa que os países foram formados por grupos de pessoas que falavam o mesmo idioma e tinham a mesma cultura.

Compreender uma narrativa nos coloca como membro de um grupo, não importa qual. Contamos histórias através de textos, vídeos, imagens, memes, conversas, etc.

As situações então são inúmeras! Reunimos a família nas refeições para saber as histórias do dia uns dos outros, procuramos histórias daqueles que admiramos e dos assuntos que nos interessam.

São as histórias que nos identificam dentro de um contexto.

As fábulas, primeiro contadas ao redor da fogueira e eternizadas pelos contos de fadas, também tinham o intuito de educar o instruir os ouvintes.

Manutenção do Conhecimento

Se o saber é a base de quem somos dentro de um determinado contexto, contar histórias uns para os outros dá ainda mais força à identificação. É na narrativa que reside a troca de experiências e o registro das descobertas pessoais.

Não há nada de fora da natureza que não tenha sido inventado por alguém. Todas as ferramentas que utilizamos, cada tijolo, cada vidro, cada tecido, tudo!

Tudo o que conhecemos na vida moderna foi inventado por alguém que contou uma história para convencer os outros de que aquela ideia valia a pena.

Quando temos uma experiência no mundo real, a ideia e a emoção ficam em dois campos separados.

Transmissão de valores

É impossível falar de transmissão de valores através das histórias sem falar da Bíblia. O livro mais famoso do mundo nada mais é do que uma grande história com o intuito de transferir valores através da religião. E funciona muito bem há mais de 2 mil anos.

Mas a religião não foi o primeiro nem o único valor transmitido por histórias. Encontramos na filosofia diversos exemplos, como nos diálogos de Platão.

As fábulas, primeiro contadas ao redor da fogueira e eternizadas pelos contos de fadas, também tinham o intuito de educar o instruir os ouvintes.

Hoje não é diferente. Podemos citar inúmeros livros, filmes e relatos sobre guerras, desastres naturais, terrorismo e assassinatos que carregam consigo os horrores vividos por aqueles que fizeram parte dos acontecimentos. É a famosa moral entrando em ação aqui.

Ao nos envolvermos e vivenciarmos o acontecimento da narrativa, nós aprendemos.

Simulação

Pensando nisso, chegamos à simulação. Contar histórias nos ajuda a vivenciar um fato sem vivê-lo de fato, o que chamamos de emoção estética (aesthetic emotion). Quando temos uma experiência no mundo real, a ideia e a emoção ficam em dois campos separados e, muitas vezes, acontecem em dois momentos diferentes.

Por exemplo, pense na morte de um ente querido. Nós temos uma ideia de como é perder alguém da família (pais, avós, etc), mas é algo muito diferente da emoção sentida de quando nos acontece de verdade.

No entanto, ao nos envolvermos com um personagem, vivenciamos ao mesmo tempo a ideia da perda e a emoção assim que ela acontece. Naquele momento, nós somos aquele personagem e nos apossamos da experiência vivida por ele. Em outras palavras, nós simulamos tão bem uma vida a ponto de nos emocionarmos.

Queremos ser entretidos o tempo inteiro.

Autoconhecimento

O fato de sentirmos através das histórias diz muito sobre nós. Ao nos envolvermos e vivenciarmos o acontecimento da narrativa, nós aprendemos. Aprendemos o que nos incomoda, nos emociona, nos causa inveja, nojo, horror, alegria, prazer, incômodo, tudo! É o que eu chamo de poder sensorial das histórias.

Claro que o sentimento elucidado ao ver não é o mesmo de executar o ato em si – e por isso se trata de uma simulação –, mas sabemos também que nos descobrimos com a vivência dos personagens. É na imaginação que o contar histórias reside e traduz para o corpo um novo pedacinho de quem somos.

O bom escritor busca com afinco os melhores professores.

Entretenimento

Não menos importante, eis o entretenimento. Já que estamos sedentos por ir além de nós mesmos, buscamos ouvir e contar histórias para nos distrair. Queremos ser invadidos por sensações novas, desafiados por mistérios, estimulados com piadas, distraídos com problemas alheios.

Queremos ser entretidos o tempo inteiro.

Talvez esse seja o único motivo pelo qual você busque uma boa história. Você só quer matar o tempo. No entanto, é impossível negar que, por mais que a motivação pareça banal, as transformações que ela pode causar no seu dia são imprevisíveis.

A fogueira cibernética

Hoje nossa fogueira aumentou. Mesmo invisível, ela nos une, nos ajuda a sobreviver, mantém o conhecimento são e salvo (assim espero!), transmite valores, nos faz simular vidas, nos autoconhecer e nos entretém como ninguém: estou falando da internet.

Online, contamos histórias todos os dias. Buscamos muito, muito mesmo. Buscamos respostas para tudo, desde pequenas questões do cotidiano até o sentido da vida.

As histórias são tantas que estamos perdidos, inundados por elas.

Por isso, busque e conte sempre boas histórias. Alimente-se delas, mesmo que seja só por distração, sem compromisso.

O bom escritor busca com afinco os melhores professores – e eles estão logo ali, nos próximos livros, filmes, jogos e séries com os quais você terá contato.

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Quem escreve sobre escrita

Mylle Pampuch

Mylle Pampuch escreve e edita livros. Publicou as histórias em quadrinhos A Samurai e Doce Jazz e os livros de contos A Sala de Banho e Realidades pré-distópicas (& modos de usar). Ministra oficinas de escrita criativa, orienta autores em seus projetos literários e incentiva todos que queiram a escrever e publicar suas próprias histórias.

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