Virginia Woolf sobre como ler um livro pode potencializar nossa liberdade

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“Na verdade, único conselho sobre leitura que alguém pode dar a outra pessoa é não aceitar conselhos, seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões.” 

Cada página foi antes uma página em branco, assim como cada palavra que aparece nela agora não esteve sempre ali”, nos lembra Francine Prose de que o coração da escrita é o encadear das palavras, e complementa que “todos os elementos da boa escrita dependem da habilidade do escritor de escolher uma palavra em vez da outra. E o que nos prende e mantém nosso interesse tem tudo a ver com essas escolhas.”

Se hoje Francine Prose é uma das grandes defensoras da leitura atenta, é devido a todos que reconheceram o valor do livro e a importância da leitura ao longo da história. E uma dessas defensoras, falecida apenas seis anos antes do nascimento de Francine, é Virginia Woolf (25 de janeiro de 1882 – 28 de março de 1941).

O livro A Arte do Romance reúne ensaios publicados por Virginia Woolf em vários jornais e revistas entre os anos de 1916 e 1939, nos quais ela discorre sobre escrita, leitura e o papel da mulher na literatura.

Como integrante do clube de leitura Bloomsbury Group, um dos grupos artísticos mais proeminentes da Inglaterra na década de 1920, Virginia Woolf vê a leitura como uma forma de liberdade plena, na qual as leis e convenções impostas pelo mundo real são dispensáveis. No ensaio intitulado Como Ler um Livro?, publicado em 1925, ela aconselha:

“Na verdade, único conselho sobre leitura que alguém pode dar a outra pessoa é não aceitar conselhos, seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões. (…) Admitir entrada de autoridades, por mais paramentados que estejam, em nossas bibliotecas e deixar que nos digam o que ler, como ler, que valor dar ao que lemos é destruir o espírito de liberdade que é o próprio alento desses santuários. Em qualquer outro lugar, leis e convenções podem nos tolher – lá, não há nenhuma.”

Ilustração de Virginia Woolf com carvão vegetal branco, caneta esferográfica e aquarela em madeira, por Cindy Song

A autora segue o raciocínio ressaltando que, apesar da leitura ser um ato de liberdade, ler também é um ato de desapego com o ego. Quase um século antes da enxurrada de informações que experimentamos hoje, Virginia já reconhecia que, diante das muitas opções disponíveis, é preciso escolher livros não pelo que eles parecem oferecer, mas pela possibilidade de conversar com outras almas.

“É simples dizer que, como os livros têm categorias – literatura, biografia, poesia –, devemos separá-los e extrair de cada um aquilo que cada um nos deveria dar. Mas poucos perguntam aos livros o que podem nos dar. Em geral chegamos aos livros com a mente vaga e dividida, pedindo à literatura que seja verídica, à poesia que seja falsa, à biografia que seja lisonjeira, à história que reforce nossos preconceitos. E se banissemos todas essas ideias pré-concebidas durante a leitura, já seria um começo muito louvável. Não dê ordens ao seu autor; tente converter-se nele. Seja seu cúmplice e companheiro de trabalho. Se de início você mantém distância, faz ressalvas e críticas, está-se impedindo de obter o valor mais pleno possível daquilo que lê. Mas, se abrir a mente ao máximo, sinais e sugestões de finura quase imperceptível, desde o torneio das primeiras palavras, vão levá-lo a presença de um ser humano diferente de qualquer outro. Embeba-se disso, familiarize-se com isso e logo descobrirá que seu autor está dando, ou tentando lhe dar, algo muito mais definido.”

Como leitores, devemos reconhecer que o trabalho do escritor constitui uma “tentativa de criar algo tão sólido e estruturado quanto um edifício”, mas com o abstrato das palavras. Virginia nos lembra que ler não é igual a ver e que talvez a melhor maneira de entender o ofício da escrita seja vertendo em palavras uma experiência recente.

“Lembre-se, então, algum acontecimento que lhe tenha deixado uma impressão marcante – por exemplo, quando você passou por duas pessoas conversando na esquina. Uma árvore vibrou, uma luz elétrica dançou, o tom da conversa era cômico e também trágico; aquele momento parecia conter toda uma visão, uma concepção inteira. 

Mas, quando você tentar reconstruí-lo em palavras, verá que ele se despedaça em mil impressões conflitantes. Algumas precisam ser atenuadas, outras realçadas; nesse processo, é provável que você perca todo domínio sobre a própria emoção.”

Ilustração digital “Next Chapter”, de Ayku Aydogdu

Portanto, ao realizarmos uma leitura atenta, nós não só valorizamos o nosso tempo de leitura, mas também o trabalho realizado pelo autor. Ao dar atenção às escolhas realizadas por quem escreve, começamos a dedicar cada vez menos energia aos “escritores menores”.

“Cada criador observa meticulosamente as leis de sua perspectiva própria e, por mais que exijam de nós, nunca nos confundirão ao introduzir duas espécies distintas de realidade, como ocorre com tanta frequência com os escritores menores.”

Depois de dar alguns exemplos e analisar alguns textos, Virginia Woolf reconhece que, talvez, a tarefa mais complicada seja eximir-se da identificação com o texto. Calar opiniões, julgamentos e “amo ou odeio” enquanto lemos beneficiaria uma visão imparcial em busca do valor do texto em si. No entanto, se a tarefa já era complexa há um século, hoje ela é quase impossível quando a internet nos obriga a emitir opiniões instantâneas sobre tudo o que pensamos.

“Podemos ressaltar o valor da simpatia; podemos tentar submergir nossa identidade durante a leitura. Mas sabemos que não podemos nos identificar totalmente, nem nos absorver por completo; há sempre um demônio dentro de nós sussurrando “odeio, amo” e não há como silenciá-lo. Na verdade, é exatamente porque odiamos e amamos que nossa relação com os poetas e romancistas é tão íntima que consideramos insuportável a presença de outra pessoa. E mesmo que os resultados sejam horrendos e nossos juízos sejam errados, ainda assim nosso gosto, o nervo sensorial que envia choques por todo nosso corpo, é nosso grande farol; aprendemos por meio do sentir; não podemos eliminar nossa idiossincrasia sem empobrecê-lo.”

Complemente essa leitura com os outros ensaios do livro A Arte do Romance, com dicas de grandes escritores sobre como melhorar suaas escolhas de palavras, descobrindo o que é o close reading e como ele pode te ajudar a ler um livro, e exercitando suas habilidades como escritor ao explorar ideias de amor e ódio.

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Quem escreve sobre escrita

Mylle Pampuch

Mylle Pampuch escreve e edita livros. Publicou as histórias em quadrinhos A Samurai e Doce Jazz e os livros de contos A Sala de Banho e Realidades pré-distópicas (& modos de usar). Ministra oficinas de escrita criativa, orienta autores em seus projetos literários e incentiva todos que queiram a escrever e publicar suas próprias histórias.

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