Para ler como um escritor: a leitura atenta para aprimorar seus textos

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Ler é uma aventura. Para os apaixonados por leitura, assim como eu, sentar-se no meio da tarde na companhia de um livro é um dos grandes prazeres da vida. Mas para quem faz da escrita o seu ofício, apenas ler não basta: é preciso fazer uma leitura atenta.

Enquanto cresce a procura por métodos que ensinem a ler mais rápido e por apps que resumam livros, navego contra a corrente: minha proposta é que você leia mais devagar.

Saborear as palavras e retardar o final do livro são ótimos motivos para desacelerar a leitura, mas fazem parte da fruição. A proposta da leitura atenta é ir além; partindo em busca de tudo o que o texto tem a oferecer.

A primeira vez que tive contato, de forma consciente, com a leitura atenta, foi através do livro Para ler como um escritor, da autora Francine Prose. Ela ministra aulas de escrita criativa há mais de vinte anos como professora visitante em várias universidades nos EUA e também é crítica literária.

Para ler como um escritor mudou a minha visão sobre leitura e sempre o recomendo para todos os meus alunos. Nele, a autora esmiúça cada pedacinho do texto, com capítulos divididos em palavras, frases, parágrafos, narração, personagem, diálogo, detalhes e gestos; sempre aplicando as técnicas da leitura atenta para desenvolver seus argumentos.

No entanto, Francine não mostra em seu livro como fazer, de fato, uma leitura atenta – e é exatamente essa a proposta deste artigo. Então vem comigo para aproveitar todo o potencial que os livros têm a oferecer.

O que é a leitura atenta

Leitura atenta, ou close reading, é uma técnica de leitura que tem por objetivo analisar vários aspectos do texto ou selecionar um desses aspectos, visando sempre uma compreensão mais profunda do texto.

O close reading nasceu com a corrente da crítica literária norte-americana New Criticism, na década de 1930 e hoje é amplamente usado nas escolas dos EUA.

A princípio, pode parecer uma mera interpretação de texto, mas não se engane: a leitura atenta vai além porque busca não só compreender o que está nas entrelinhas, mas também a estrutura escolhida pelo autor, as gradações de conflito, o ritmo narrativo, as seleções de palavras, etc.

Em suma, numa leitura atenta o leitor mantém o foco no texto em si, sem se preocupar com fatores externos e interpretativos. Para tanto, a pressa deve ficar de lado, abrindo espaço para releituras de trechos confusos, anotações em cadernos ou nas margens do livro, além de questionamentos pessoais e em grupo sobre as abordagens do texto.

A professora Elaine Showalter, em seu livro Teaching Literature, define ainda melhor o que é o close reading:

…uma leitura vagarosa, uma tentativa deliberada de nos desligarmos do poder mágico na narrativa e prestar atenção na linguagem, no imagético, na intertextualidade, na sugestão, na sintaxe e na forma. 

Portanto, é uma leitura que se faz visando algum objetivo – o que é muito útil para escritores. Se você quer descobrir, por exemplo, como Clarice Lispector causa sensações como desconforto ou confusão, a melhor forma é ler seus contos e romances com esse foco e não apenas para conhecer as histórias.

Quais elementos podem ser analisados

Para começar, é preciso dizer que todos os textos, sejam ficcionais, teóricos ou informativos, podem ser analisados. No entanto, a prática da leitura atenta é mais eficaz com textos de maior complexidade, as famosas “pedreiras”.

Assim, você não precisa mais fugir dos textos acadêmicos ou dos cânones da literatura; basta dedicar mais tempo a eles. Ser um leitor passivo, que pouco ou nada absorve do que está escrito, de nada adianta se você quer aprender para escrever.

Há uma série de elementos que podem ser analisados durante a leitura atenta – e cabe ao leitor escolher quais receberão sua atenção em determinado trecho do texto.

Forma e estrutura

Antes de mais nada, é preciso saber em que terreno estamos pisando. Identificar o gênero textual é o primeiro passo antes de começar a leitura – e a etapa mais fácil. Isso porque as observações feitas em um texto dissertativo serão diferentes de um texto narrativo.

Feito isso, é possível apontar como o texto é estruturado – em tópicos, em capítulos, em partes, todo corrido, etc.

No caso da narrativa, você pode procurar cada um dos seus atos, sua curva dramática e seus momentos de maior tensão.

Estilo do autor

Para escritores, a maneira como o autor escreve é um dos fatores mais analisados em uma leitura atenta. Compreender, de forma consciente, quais ferramentas o ficcionista utiliza na construção da sua narrativa é de vital importância para o aprendizado.

É aqui que se encaixa a máxima “os grandes mestres estão nos livros”.

Quase todas as histórias possuem personagens, narração, diálogos, conflitos; a questão é como cada escritor faz para construir a sua narrativa. O narrador é em primeira ou terceira pessoa? O discurso é direto, indireto ou livre? Como o autor utiliza a pontuação, a distribuição dos parágrafos, de capítulos? Quais palavras ele escolheu usar e quais deixou de fora?

Todas essas pequenas escolhas autorais é que dão unidade e transformam o amontoado de palavras em uma narrativa sólida e com personalidade.

Som e ritmo

Todo texto tem um ritmo próprio, uma fluidez. Analisar quais elementos proporcionam as sensações de acelerar e ralentar – tamanho das frases, das palavras, dos parágrafos – e o que define o ritmo da leitura – a presença ou não de rimas, se o texto é escrito em verso ou prosa – proporcionam uma melhor compreensão do propósito do autor.

Retórica

Perceber como metáforas, comparações, imagens e símbolos utilizados no texto enriquecem o significado da narrativa é de suma importância quando o objetivo da leitura atenta é desvendar as ferramentas que o escritor utiliza ao construir a sua narrativa.

Já em textos teóricos, uma análise da retórica pode ser útil para identificar a construção do discurso, a consistência do argumento e a possível presença de falácias.

Vocabulário utilizado

Pausar a leitura para buscar palavras no dicionário em prol de uma melhor compreensão é uma das práticas mais comuns da leitura atenta. No entanto, se o leitor não tiver um dicionário por perto ou não entender o real significado da palavra desconhecida, a análise dos outros elementos deve proporcionar a compreensão através do contexto.

É preciso dar atenção também ao vocabulário conhecido e como ele ecoa no texto como um todo. Identifique as palavras importantes, repetidas e que parecem deslocadas de contexto e se pergunte o que cada uma delas significa de fato, caso a caso.

Sintaxe

A forma como as frases são construídas também pode ser analisada e está intimamente ligada ao estilo do autor. Se as frases são claras e diretas ou longas e truncadas; se fazem sentido ou se perdem no caminho; onde estão os sujeitos e predicados; e, em especial, quais as possíveis motivações do autor para escrever da forma como ele escreve.

Tema

Por último, mas não menos importante: a leitura atenta proporciona a compreensão do tema abordado pelo autor. Todo texto tem um assunto central que o costura – inclusive os textos narrativos – e o segredo do bom texto é ecoar esse tema por toda a sua extensão. Encontrar o tema do texto é a etapa mais fácil, uma espécie de consequência da análise dos elementos anteriores.

Etapas da leitura atenta

Agora que já conhecemos quais elementos podem ser analisados, é hora de saber como realizar uma leitura atenta.

Antes de mais nada, tenha um objetivo claro em mente ao realizar a leitura. Pergunte-se o que você quer desvendar do texto que tem diante dos olhos. Pense em respostas específicas, tais como “quero compreender a ideia central desses três parágrafos” ou “quero entender como o autor utiliza o discurso indireto livre nesse conto”.

É preciso ressaltar que a leitura atenta consiste em reler um determinado trecho quantas vezes forem necessárias, até que se esgotem respostas às perguntas do leitor. Por isso, não se sinta ignorante caso não consiga compreender um trecho depois de lê-lo cinco, dez, vinte vezes. Dê tempo ao tempo.

Dito isso, vamos às etapas propostas pelo centro de escrita de Harvard:

Leia fazendo anotações. Sublinhe trechos importantes, palavras desconhecidas, metáforas interessantes e anote seus pensamentos sobre o que está escrito – de preferência nas margens da folha. Por enquanto, não se preocupe em desvendar nada, apenas registre suas impressões.

Busque por padrões. Repetições, contradições, similaridades, etc. É o momento de se perguntar como o autor trabalha os conceitos que apresenta no texto. Quais ferramentas ele utiliza, como cada uma delas trabalha a seu favor, como ele desenvolve o tema, se sua linguagem é clara ou embolada, qual o ritmo do texto, como ele situa o leitor no tempo e no espaço, se seu texto é formal ou descontraído.

Faça perguntas sobre o texto. Depois de identificar as ferramentas utilizadas pelo autor, é hora de compreender o que o autor quis dizer com tudo isso. É aqui que entramos no campo da interpretação, mas sempre com foco no que está escrito. Nada de tirar conclusões precipitadas com análises pseudo-psicológicas dos personagens só porque um deles segura um cabo de vassoura. Depois que o escritor teve todo o trabalho de salpicar as peças ao longo do texto, é a sua vez, como leitor, de voltar no contexto geral do que está escrito e montar esse quebra-cabeças.

Repita o processo com todos os trechos que julgar complexos, sem se envergonhar por ir e voltar nas páginas. Fazer uma leitura atenta e compreender o que está escrito é bem mais digno do que ler só por ler, chegando ao fim do livro com a impressão de ter jogado tempo fora.

Seja um leitor ativo ao invés de voraz

Uma leitura de qualidade é a essência da boa escrita. De nada adianta ter lido mil livros se o leitor não estava presente durante a leitura. Aqui, não é o quanto se lê que importa, mas como. A qualidade da leitura se manifesta nas impressões que foram apreendidas da narrativa.

Por isso, um bom leitor não é, necessariamente, o leitor voraz. Ao invés de ficar preocupado com tudo o que você já deveria ter lido na vida, relaxe a aproveite a leitura que está fazendo. Anote coisas. Volte quantas vezes forem necessárias. Procure no dicionário as palavras desconhecidas. Leia em voz alta aquele trecho que te impactou. Pause e reflita.

A prática da leitura atenta tornará aqueles textos pesados e densos mais fáceis de enfrentar. Pouco a pouco, permita-se ler livros complexos e mais longos, sem a mínima pressa de terminar.

Afinal, se os escritores levam anos elaborando suas narrativas, porque nós, leitores, precisamos correr para terminar?

4 comentários

  • Olá Mylle! Sou o Octávio d’Almeida de Moçambique, tenho 19 anos e devo dizer que o seu trabalho de certa maneira tem acrescentado imenso ao meu e àquilo que faço. Faço o por sentir que já ñ o posso conter dentro de mim e tento sempre na minha escrita mostrar as pessoas a minha maneira de ver o mundo, nem sempre é bonita e poética. Mas, creio eu que pode acrescentar algo diferente de como eles se posicionam no mundo. E parte disso é graças a si e ao que faz, A escrita dá-me paz, dá-me claridade mental e me mantém vivo. Digo vivo, porque através da escrita dou e posso dar o meu contributo ao um mundo melhor. E… bom, é tudo|

    • Oi, Octávio! Obrigada por vir me contar sua relação com a escrita e com o meu trabalho. Saber que alguém tão distante de mim geograficamente lê meus artigos aqui na OdE e se sente incentivado a escrever é uma das maiores recompensas que já recebi. Siga escrevendo, criando e colocando no papel tudo o que desejar. Obrigada por esse presente e boa escrita!

  • Oi Mylle, tudo bem? Você poderia dizer que fonte utilizou para afirmar que a metodologia da Leitura Atenta surgiu com o New Criticism?

    Valeu muito.

    • Oi, Gabriel! A leitura sempre foi uma prática entre os escritores e leitores, mas o termo foi cunhado durante o New Criticism. Acredito que a primeira vez que encontrei o termo foi o livro do Terry Eagleton, “Teoria da Literatura: Uma Introdução“, mas há várias fontes na internet que falam sobre o movimento e sobre o close reading. Espero ter ajudado 🙂

Quem escreve sobre escrita

Mylle Pampuch

Mylle Pampuch escreve e edita livros. Publicou as histórias em quadrinhos A Samurai e Doce Jazz e os livros de contos A Sala de Banho e Realidades pré-distópicas (& modos de usar). Ministra oficinas de escrita criativa, orienta autores em seus projetos literários e incentiva todos que queiram a escrever e publicar suas próprias histórias.

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