“Parece-me que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda quente do próprio nascimento”
“Artistas conectam os pontos — não precisamos interpretar as linhas entre eles”, pondera Amanda Palmer, e complementa “simplesmente as traçamos e então apresentamos nossas conexões ao mundo como um presente, que pode ser aceito ou recusado.”
Muito antes de se casar com Neil Gaiman, Amanda Palmer construiu uma carreira sólida como musicista pedindo todo o tipo de ajuda para a sua base de fãs, a ponto de ser uma das primeiras pessoas a juntar 1 milhão de dólares do Kickstarter.
Enquanto Amanda Palmer ainda era uma bebê com pouco mais de um ano conectando seus primeiros pontos, Clarice Lispector (10 de dezembro de 1920 – 9 de dezembro de 1977) nos deixava, um dia antes de completar 57 anos de idade. Mesmo sob sedativos e com um câncer se espalhando por todo o corpo, ela continuou ditando frases até a manhã em que sua estrela silenciou.
No apêndice do livro Todos os Contos, há um texto raro e instigante no qual Clarice Lispector lança pistas sobre seu processo criativo. Originalmente publicado na seção Fundo de Gaveta do livro A Legião Estrangeira, nessa “explicação inútil” [palavras da autora] ela comenta o estado de quase transe que experimenta ao escrever.
“Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance. Depois que se despegam de mim, também eu os estranho. Não se trata de “transe”, mas a concentração no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito. Alguma coisa, porém, posso tentar reconstituir, se é que importa.”
O mistério é uma das marcas da autora – tanto para ela quanto para quem a lê. Ao falar sobre como nasceu o conto “Feliz Aniversário”, Clarice diz que foi a uma festa e escreveu algumas linhas, revisitadas anos depois.
“Tive uma “impressão”, de onde resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se sente. Anos depois, ao deparar com essas linhas, a história nasceu, com uma rapidez de quem estivesse transcrevendo cena já vista – e no entanto nada do que escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. Muito tempo depois um amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea, e com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e dela eu só conhecera, em criança, um retrato, nada mais.”
Ao comentar sobre o processo do conto “Amor”, é bonito ver como o processo criativo desabrocha diante dela através da voz de um amigo. Apesar do conto ter sido escrito antes, ele só fica pronto no ato da leitura, exterior a ela.
“Me lembro é de um amigo lendo a história datilografada para criticá-la, e eu, ao ouvi-la em voz humana e familiar, tendo de súbito a impressão de que só naquele instante ela nascia já feita, como criança nasce. Este momento foi o melhor de todos: o conto ali me foi dado, e eu o recebi, ou ali eu o dei e ele foi recebido, ou as duas coisas que são uma só.”
Clarice Lispector reconhece a influência que os animais exercem sobre sua escrita. Sobre o processo de “Uma galinha”, um dos seus contos mais misteriosos, ela diz que os bichos são “uma das formas mais acessíveis de gente”.
““Uma galinha” foi escrito em cerca de meia hora. Haviam me encomendado uma crônica, eu estava tentando sem tentar propriamente, e terminei não entregando; até que um dia notei que aquela era uma história inteiramente redonda, e senti com que amor a escrevera. Vi também que escrevera um conto, e que ali estava o gosto que sempre tivera por bichos, uma das formas acessíveis de gente.”
Há também os textos dos quais ela assumidamente desgosta, como é o caso do conto “Preciosidade”.
“Terminei antipatizando com a menina e depois pedindo-lhe desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas tendo vontade de não pedir mesmo. Terminei arrumando a vida dela mais por desencargo de consciência e por responsabilidade que por amor. Escrever assim não vale a pena, envolve de um modo errado, tira a paciência. Tenho a impressão de que, mesmo se eu pudesse fazer desse conto um conto bom, ele intrinsecamente não prestaria.”
O melhor exemplo de como Clarice Lispector liga os pontos durante o seu processo criativo está no comentário que fez sobre como nasceu o conto “A menor mulher do mundo”.
““A menor mulher do mundo” me lembra domingo, primavera em Washington, criança adormecendo no colo no meio de um passeio, primeiros calores de maio – enquanto a menor mulher do mundo (uma notícia lida no jornal) intensificava tudo isso num lugar que me parece o nascedouro do mundo: África.”
É impossível ignorar o lirismo com que a autora fala sobre seu processo criativo. A maneira como explica a influência dos bichos em sua escrita é quase visceral – o mesmo lado visceral que ecoa em toda a sua obra.
“Creio que também este conto vem de meu amor por bichos; parece-me que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se pondo imediatamente de pé, e já vivendo toda, e em cada minuto vivendo de uma vez, nunca aos poucos apenas, nunca se poupando, nunca se gastando.”
Por fim, ao comentar o processo do conto “O búfalo”, os olhares de humanos e animais se confundem, colocando-os no mesmo patamar de observadores e observados.
““O búfalo” me lembra muito vagamente um rosto que vi numa mulher ou em várias, ou em homens; e uma das mil visitas que fiz a jardins zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele, ele sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje.”
Complemente essa leitura com Todos os Contos de Clarice Lispector, descobrindo porque é preciso perder o receio de pedir ajuda à sua base de leitores, refletindo como ler e escrever seis horas por dia te fará descrever melhor seus cenários e explorando os processos criativos de Stephen King, Haruki Murakami e outros escritores.
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